• Fernando Pessoa

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      Conta a lenda que dormia

    Uma Princesa encantada

    A quem só despertaria

    Um Infante, que viria

    De além do muro da estrada.

    Ele tinha que, tentado,

    Vencer o mal e o bem,

    Antes que, já libertado,

    Deixasse o caminho errado

    Por o que à Princesa vem.

    A Princesa Adormecida,

    Se espera, dormindo espera,

    Sonha em morte a sua vida,

    E orna-lhe a fronte esquecida,

    Verde, uma grinalda de hera.

    Longe o Infante, esforçado,

    Sem saber que intuito tem,

    Rompe o caminho fadado,

    Ele dela é ignorado,

    Ela para ele é ninguém.

    Mas cada um cumpre o Destino

    la dormindo encantada,

    Ele buscando-a sem tino

    Pelo processo divino

    Que faz existir a estrada.

    E, se bem que seja obscuro

    Tudo pela estrada fora,

    E falso, ele vem seguro,

    E vencendo estrada e muro,

    Chega onde em sono ela mora.

    E, inda tonto do que houvera,

    À cabeça, em maresia,

    Ergue a mão, e encontra hera,

    E vê que ele mesmo era

    A Princesa que dormia.

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    Autopsicografia

    O poeta é um fingidor.

    Finge tão completamente

    Que chega a fingir que é dor

    A dor que deveras sente.

    E os que lêem o que escreve,

    Na dor lida sentem bem,

    Não as dores que ele teve,

    Mas só a que eles não têm.

    E assim nas calhas de roda

    Gira, a entreter a razão,

    Esse comboio de corda

    Que se chama coração.

    Eu amo tudo o que foi,

    Tudo o que já não é,

    A dor que já me não dói,

    A antiga e errônea fé,

    O ontem que dor deixou,

    O que deixou alegria

    Só porque foi, e voou

    E hoje é já outro dia.

    Como a noite é longa!

    Toda a noite é assim...

    Senta-te, ama, perto

    Do leito onde esperto.

    Vem p'r'ao pé de mim...

    Amei tanta cousa...

    Hoje nada existe.

    Aqui ao pé da cama

    Canta-me, minha ama,

    Uma canção triste.

    Era uma princesa

    Que amou... Já não sei...

    Como estou esquecido!

    Canta-me ao ouvido

    E adormecerei...

    Que é feito de tudo?

    Que fiz eu de mim?

    Deixa-me dormir,

    Dormir a sorrir

    E seja isto o fim

    Tudo o que sou não é mais do que abismo

    Em que uma vaga luz

    Com que sei que sou eu, e nisto cismo,

    Obscura me conduz.

    Um intervalo entre não-ser e ser

    Feito de eu ter lugar

    Como o pó, que se vê o vento erguer,

    Vive de ele o mostrar.

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