Aloísio Brandão |
O limpador de almas |
Sansão |
Tempo do poeta |
A invisível Phya de Vicent |
Vizinhas de doce |
É dos galos a noite |
O limpador de almas |
De Aloísio Brandão |
Eram macias aquelas tardes que se deitavam no tempo duro. Elas traziam o velho Henrique em sua carroça que já foi verde. Era estranha essa carroça. De tanto a vermos no meio da tarde, no canto da alma, na rua clara, virou carroça de Seu Henrique ou Seu Henrique da Carroça. Era bem certo que Seu Henrique só tinha a alma e a carroça. Ia e vinha, como se fosse petrificar-se, ali, na frente. Por ser de alma é que jamais petrificou-se o velho Henrique, mas, sim, deixava, rastro de luz e de pureza por onde andava. O velho Henrique - e a sua fala forjada a lã de paineira - levava o lixo das casas todas, de toda rua, de toda alma. De tão fazer esse serviço, de levar longe o lixo alheio, o velho Henrique levou a si próprio, como quem vai num par de asas. Era a vida sugando o sumo da existência. A sua carroça levou-o longe, mais longe ainda que de costume. Foi para o céu sem precisar sofrer reparos na dura usina do purgatório. |
Sansão De Aloísio Brandão E que há de mal num coração Sansão que quebra as grades do peito a mão e, depois, vai bater forte o pilão paixão tirando as palhas do amor em grão? |
|
Tempo do poeta De Aloísio Brandão Durante alguns dias, a luz do poeta invadiu a minha cidade. O tempo do seu verbo era a eternidade. Foram uns sabiás que me levaram pro quintal ao ouvirem o tropel do seu coração, montado que vinha numa poesialazão. A manta de lilases na cristaleira da tarde, silêncio estranho silêncio: foi quando vi que era verdade o par de asas que ele tinha. O peito a porcela fina põe vida na palavra-vão. Quando ele se curva pra frente, é pra catar devagarinho as metáforas no chão. |
De Aloísio Brandão |
Phya de Vincent tem o insuportável dom de ser invisível. Deixou-me em trapos, roendo o meu espírito, nas noites em que os meus olhos de lince não a alcançaram, mesmo estando Phya a palmos do meu nariz. Podia sentir-lhe o gosto, a umidade, o cheiro, dinamitando as minhas minas com desejos não satisfeitos. Mas não podia vê-la. Phya de Vincent também não me via, embora escutasse o meu sussurro, berrando amor. Ah! Se Drummond, que me visita, agora, com o seu punhal de palavras, fosse um bálsamo para as chagas da solidão... Mas Drummond fustiga. Impiedoso Drummond. Phya de Vincent deve estar, agora, passando um café, ou olhando o seu novo sortimento de estrelas. Ou deve estar dissolvendo a consciência numa bacia de solidão e desassossego. E tudo, porque não aprendera a desfazer a mágica de ser invisível, na hora do amor. Essas noites sem Phya de Vincent foram uma peixeira escavando o torrão de minha paz, a minha brejeira paz. Preciso, de novo, de andar a pé na estrada do Curral Novo, impregnado de lua cheia e de bois sonolentos ruminando solidão e enchendo a pança da noite com a mais bela e necessária paz. |
.
De Aloísio Brandão |
Dona Dudu é a solidão Dona Brusina bate pilão Dona Tarsila ri inteira Dona Maroca, o canto fácil Dona Santaninha, altamagra e sisuda. Todas têm o sertão agarrado ao peito. O sertão por vocação O sertão por destino O sertão por necessidade. Nunca viram televisão Jamais água gelada. Avião, só no céu e, mesmo assim, o teco-teco de Valentim Piloto. Mas nunca deixou de correr nelas aquele riacho clarim, cheio de silêncio e paz. O que essas minhas vizinhas têm em comum, dentro de suas diferenças? O tacho grande de cobre parido pelo turco Dodô Tacheiro. Dodô é um caso de amansar a marretadas a sina do cobre de ser tacho. Nas mãos de Dodô todo cobre sonha com a vida de tacho. Leva fogo por baixo o tacho, é certo, mas doces na alma. Por isso, vivem tão alegres nas mãos de minhas vizinhas, areados só por dentro que é onde fica a alma açucarada. O tacho faz Dona Dudu Dona Maroca Dona Brusina (Ambrosina no cartório) Dona Tarsila Dona Santaninha essas vizinhas de doce. |
São os galos, essas criaturas essenciais da goela pra cima, que fiam a lona da noite com a lã do canto, alcançando Bruno, Béu, Clarinha, Thomaz, Iana e todo o arquipélago de meninos. E encharcam as almas madrugadeiras. Os galos são sócios da noite. Galos e noite fazem transfusão de sangue entre si. E se completam. O que seria da noite sem os galos? Talvez, um amontoado de estrelas e escuridão e uma solidão borbulhando no terreiro de um peito qualquer. São da noite os galos. |