Suponhamos
Suponhamos que eu tenha nova oportunidade
de começar tudo de novo.
Volto ao útero da minha mãe
e, no mesmo dia em que nasci, surjo novamente - não aos gritos,
como da primeira vez - mas com o espírito adulto e carregando
na mesma malinha que levaram para a maternidade com o
meu enxoval, uma boa bagagem de experiências.
Vou poder usá-las para mudar o que
não foi bem feito e para manter o que foi bem escolhido:
Vou passar por algumas situações
e pular outras, que me desagradaram tanto. Vou tornar a conhecer quem me
acrescentou e a driblar quem me trouxe problemas:
-
Não vou mais me desgarrar da minha avó
e quebrar meu dente, logo o da frente, fazendo estrepolias na grade em
que ela me proibira de subir.
-
Em compensação vou comer muito
mais doces, porque agora que gosto deles, já não posso mais
devorá-los, temendo ver a balança subir.
-
Vou continuar a me comportar do mesmo jeito
na escola, pois eu era feliz fazendo bagunças e sei que nunca
mais poderei repeti-las, até por uma questão de preparo físico.
-
Nem vou dar bola para a freira que dizia que
eu usava a inteligência para escrever o que não devia,
pois foi aí que comecei a guardar tudo só para
mim e não dei aos outros o prazer de me criticar.
-
Mas, podem ficar certos, de que vou continuar
dançando, sem nem querer saber como uma bailarina vai viver
no Brasil.
-
Vou continuar a enfiar os olhos das bonecas
para dentro, só para pesquisar como eles foram postos ali.
-
Vou descer de carrinho de rolimã como
um moleque por todas as ladeiras das redondezas, e com certeza
me esborrachar nos gramados do alheio, mesmo correndo o risco de
não ser mais considerada uma menina bem comportada.
-
Juro que não vou mais pegar os biscoitos
e o refresco do padre que rezava as missas no meu colégio, pois
não consegui pagar até hoje a penitência enorme
que ele me passou quando soube do meu pecado e porque os biscoitos
não valeram a pena; estavam duros.
-
Não vou mais achar que meu pai estava
errado quando me dava opiniões, pois hoje entendi o quanto
ele estava certo e que eu o contestava por pura rebeldia de adolescente.
-
Não vou deixar de ir à praia um
só dia deste “antigamente”, pois hoje ela está impraticável,
com arrastões, pivetes e tiroteios.
-
Vou muito mais ao cinema do que já fui,
pois nunca mais vou poder assistir o Tom & Jerry no cinema Metro, que
foi vendido, descaracterizando a minha infância em Copacabana.
-
Vou ter o mesmo primeiro namorado - pois
ele tinha fama de louco - mas perto dos demais que conheci, era uma
santa e divertida criatura, com quem curti uma fase inesquecível
da minha vida.
-
Vou viajar muito mais enquanto as responsabilidades
não são tantas, pois depois que começam a aparecer
entraves é uma dificuldade poder arredar o pé de onde
se está.
-
Não vou perder amigos antigos de vista,
pois tenho muitas saudades deles e não sei onde encontrá-los.
-
Vou dizer muito mais às pessoas que amo,
que eu as amo, pois acho que tanto faz bem ouvir, quanto dizer.
-
Vou continuar a ter medo de bichos, pois isto
me rendeu boas oportunidades de colo.
-
Não vou mais fugir de experiências
novas tentando me proteger nem sei de que; mas vou me proteger mais das
mágoas que algumas pessoas me causaram, colocando-as no seu devido
lugar antes que tenham chances de abusar da minha boa-fé.
-
Vou me dedicar mais às coisas de que
gosto e não levar tão a sério as de que não
gosto tanto, só por compromisso ou responsabilidade.
-
Vou ter mais carinho com determinadas pessoas,
pois sei o quanto elas me fizeram ou vão me fazer falta
.
-
Não vou mais ter vergonha de cobrar o
que me devem, se quem me deve não tem vergonha de me dever.
-
Vou repetir os mesmos “sacrifícios” que
fiz por amor, pois quando a gente gosta tudo passa a ser prazer.
-
Não vou mais ter medo dos meus
medos e deixar de fazer coisas que eu adoraria ter feito, só para
fugir deles.
-
Vou me dedicar mais às artes, vou escrever
mais, dançar mais, ler mais, bagunçar mais e
esquecer que existe a contabilidade.
-
Vou continuar achando que família dá
trabalho, mas que faz falta quando não a temos.
-
Vou cultivar tudo o que tenho, pois nada dura
muito tempo sem que cuidemos.
-
Não vou ter vergonha de desistir, repetir,
tornar a fazer quantas vezes quiser as coisas que não deram certo
ou de que não gostei, para ver se de outro jeito fica melhor.
Finalmente, vou dar a quem quiser a
idéia de fazer uma lista destas,
pois se todos nós supuséssemos
como seria a nossa vida se a tivéssemos encarado sem tantos preconceitos,
talvez a aproveitássemos mais.
Maria Eugênia
- Doce Deleite
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