Um bocado esquecido

-Porque sorri?
Jorge fitou-a, uma vez mais, naqueles olhos negros e profundos, e julgou mergulhar levemente num outro mundo de encanto e mistério. Como se presenciasse duas pérolas, as mais preciosas e belas que lhe foram dado contemplar.
- Quando um dia o Paulo me disse que tinha uma irmã e que, em conveniente oportunidade, ma apresentaria, não poderia imaginar que fosse uma jovem como você.
- Porquê Imaginava-me mais bela, mais simpática, uma deusa?
- Oh, por Deus, Ana Maria. Você é a rapariga mais bela e simpática que me apresentaram até hoje. Posso considerar-me um rapaz maravilhosamente feliz.
A jovem corou pelo elogio.

Sentaram-se num banco, sob as ramagens escuras das árvores. Com a cabe�a recostada no peito de Paulo Nuno, Alice vivia as horas mais felizes da sua vida. Os seus braços fortes estreitavam-na com firmeza e, de quando em quando, entre dois beijos, trocavam curtas frases de amor.
J� era bastante tarde quando voltaram ao entusiasmo da festa. Rapidamente, misturaram-se com os demais convivas, tendo sido somente notados pelo olhar atento de Ana Maria que, intimamente, compreendeu o brilho de felicidade que iluminava o olhar da amiga.

Afastou-se com um sorriso. O sr.Valentim, chefe da secção de expediente, parou ao vê-las e esperou que elas o alcançassem. Era um homem magro, talvez com os seus trinta e cinco anos, louro e forte. Tinha os olhos pequenos, de um azul mal definido e sobrancelhas pouco abundantes, quase brancas. Vestia um fato castanho, um tanto berrante, e calçava sapatos brancos, bicudos, com uma pala grande, dobrada, a substituir os costumados cordões. Valentim foi dos que mais vibrou com a entrada das duas jovens na fábrica. Galanteador e rapaz correcto, gostava de brincar e fazer rir com piadas ou anedotas. Quando soube que ambas estavam comprometidas, quebrou um pouco o seu entusiasmo. Tornou-se estranho e silencioso, e no seu olhar nasceu um brilho desconhecido, que por vezes parecia ódio, outras vezes desinteresse ou resignação. Com o tempo, tornou-se mais afectuoso e o incidente foi esquecido.

Já as sombras da noite se avizinhavam, quando Ana Maria olhou o relógio. Faltava meia hora para a saída e sentia-se cansada, completamente esgotada. Foi à janela e esteve um momento a olhar a paisagem que daquele 4�.andar se desfrutava, e que as sombras da noite ainda deixavam descortinar. Pareceu-lhe ouvir vozes num falar exaltado, que se vinham confundir, mansamente, com o barulho surdo das máquinas de escrever. E quando ouviu um grito mais prolongado a ecoar sinistramente pelos corredores, teve um frémito repentino e voltou-se assustada. Todos tinham deixado de trabalhar. As máquinas suspenderam a sua melodia metálica, e nos olhos de todos, o espanto e o receio. Olhavam-se interrogativamente e, por instantes, o silêncio foi absoluto. A respiração nervosa e agitada das mulheres ouvia-se distintamente em estranho desafio com o zumbido duma mosca que, tonta, parecia buscar a sa�da.
O encarregado correu para a porta e ficou no limiar. Um ruído de vozes, de passos, de mais gritos, soou como cântico sinistro, e tudo se transformou em caos repentino.
- Depressa! Depressa! Há fogo!
"...Havia bastante tempo que ele notava as constantes digressões das duas jovens, logo após o saírem da escola. Admirado e confuso, havia decidido segui-las e espiar-lhes os movimentos.
O dia estivera chuvoso, e o cair da tarde anunciava-se tempestuoso. E foi com bastante dificuldade que as pequenas conseguiram a aquiescência das mães para sairem, com aquele tempo. Rapidamente haviam juntado, às escondidas, a comida que habitualmente levavam ao seu "Príncipe", e correram em direcção ao bosque, quando já afastadas dos possíveis olhares da senhora Vasconcelos. A protegê-las da chuva, um grande chapéu pertencente ao pai de Ana Maria.
Sem hesitar, e indiferente à molhadela que iria apanhar, João Manuel seguiu-as, correndo junto às paredes. No seu olhar, um brilho mesclado de curiosidade e incompreensão. Não fazia a mais pequena ideia do local para onde se dirigiam. Pouco depois, viu-as desaparecer por entre os rochedos que se erguiam altos para além do arvoredo. Quando se aproximou o suficiente, chegou-lhe ao ouvido as vozes das duas garotas:
- Meu pobre "Príncipe"!... - dizia Alice, naquele momento. - Vais passar muito frio hoje, se a noite continuar assim...
- Já podíamos ter trazido qualquer coisa para o agazalhar...
- Isto aqui é frio. O chão está húmido e lá dentro deve ser a mesma coisa.
- E está escuro...
Alice olhou para fora e viu que tinha parado de chover.
- Olha! Já não chove!...
- Então, vamos aproveitar...
Quando Ana Maria se levantava para seguir a amiga, a figura de João Manuel recortou-se na entrada, obrigando-a a deter-se.
- Que queres daqui? - perguntou-lhe, irritada.
Ele não respondeu. Limitou-se a percorrer a caverna com o olhar, detendo-se no cão que tinha parado de comer, ao sentir a presença de um estranho.
Alice avançou para ele. Na sua mente, a irritação de lhe terem descoberto o segredo, que durante tanto tempo lhes pertencia.
- Rua! - quase gritou, agarrando-lhe a camisa.
O ar jactancioso que o levara ali caíu por terra, ao notar os gestos pouco amigáveis das duas amigas.
- Rua, já disse! - tornou Alice, empurrando-o para fora.
O rapaz ia ripostar, quando o ribombar dum trovão lhe feriu os ouvidos. Instantâneamente, uma chuva grossa caíu com ruído, enfuscando o dia ainda mais.
Ao ver o medo estampado nos rostos das duas garotas, João Manuel "cresceu" para elas, acusando:
- De quem é o cão? Roubaram-no?...
Elas pareceram acordar.
- Não! Não roubámos nada! Encontrámo-lo ferido!...
- Não acredito! - E avançou, arrogante.
Desta vez, foi Ana Maria que lhe tolheu o passo, agarrando-o com as duas mãos. E quando Alice avançava também para ele. o "Príncipe" roucou primeiro, ladrou depois, atirando-se repentinamente sobre ele.
João Manuel recebeu o impacto do cão, caíu no solo, gritando, e as duas jovens precipitaram-se ao mesmo tempo, agarrando a corda que prendia o animal.
- Quieto, "Príncipe"! Para aqui!...
Os gritos de Ana Maria mesclaram-se com o estrondear dum novo trovão, que um súbito relâmpago anunciara pouco antes. O "Príncipe" voltou a ladrar, as duas abraçaram-se temerosas, e João Manuel escapou-se a correr, cambaleando no solo enlameado.
- Tenho medo, Ana Maria!...
O "Príncipe" lambeu-lhe a cara, como a incutir-lhe coragem e pôs-se a rodeá-las, num vai-vem inquieto. No céu tremulavam algumas estrelas, mas a chuva tornou-se depressa as ofuscou, caindo mais copiosamente
...Subitamente, um novo trovão ecoou com força. O "Príncipe" teve um frémito repentino, ladrou nervosamente e deitou num correr tresloucado para fora da caverna, quebrando a corda que o prendia. As duas jovens seguiram-no instantâneamente, gritando com toda a força:
- "Príncipe!"
O barulho da chuva abafou as suas vozes. Alice e Ana Maria correram para o animal, quando um risco luminoso fendeu o espa�o com brusquidão. O "Príncipe" retrocedeu com um ganido longo, e as duas jovens olharam o céu, paralisadas pelo medo. Um estrondear do outro mundo quebrou o espaço e fez tremer a terra sob os seus pés. Num instante, a caverna abateu com um ruído surdo, abafando o grito das duas garotas abraçadas pelo terror. O ecoar lúgubre da chuva e do vento permitiu deixar distinguir a ganido entrecortado do cão, apanhado pela derrocada.
Ana Maria caíu sobre as pedras escorregadias, num impulso derradeiro de chamar pelo companheiro amigo, enquanto Alice olhava a cena com os olhos esbugalhados pela dôr.
Lá ao longe, João Manuel caíu de joelhos e limpou os olhos com as mãos enlameadas. Procurou em vão distinguir a entrada da caverna, e correu de novo direito � povoação.
Ana Maria escorregou por duas vezes, levantou-se, e acabou por tropeçar finalmente, estatelando-se sem apoio no chão sujo de lama. Alice precipitou-se para a amiga com um grito de dôr, procurando reanimá-la.
Sem saber o que fazer, deitou a chorar, abraçando-lhe o corpo inconsciente.
O dia continuava cada vez mais fusco, e as sombras da noite avizinhavam-se rapidamente. Deixara de chover, e para lá do buraco deixado pela derrocada, o céu continuava carregado de densas nuvens, onde tremeluziam algumas estrelas. Surdiu então um vento frígido, cortante, que assobiava por entre as �rvores, numa can��o triste e arrepiante.
Alice pegou na amiga como pôde e, cambaleante, procurou a saída, sempre soluçando. Os seus pés pequeninos afundavam-se na lama, encharcando os sapatos, as pernas, o próprio vestido. Não soube por quanto tempo andou, nem por onde.
Tempo depois, foram encontradas pelos pais e por três homens que as buscavam, logo após terem sido avisados pelo João Manuel...

Extracto de "Um bocado esquecido"- A.N.(Outubro 1966)

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