O mistério da mulher embriagada
A minha primeira reacção foi agachar-me, como se pretendesse beijar o chão. A segunda foi agarrar as pernas esguias que vi atrás de mim. No momento exacto. Uma faca foi espetar-se contra a parede, mesmo à altura do meu peito. Rebolei sobre o corpo quase dois metros, e levantei-me agilmente. Na minha frente, os olhos faiscantes de um negro. Os seus lábios grossos e pesados pareciam entoar a canção da vitória. O nariz esborrachado movia-se ao compasso da respiração. E os olhos, a contrastarem com o preto da pele, pareciam querer hipnotizar-me, antes de me verem com uma faca enterrada no peito. Uma outra faca que ele segurava com mão firme. Recuei devagar, procurando seguir todos os seus movimentos. Vi-o avançar, ligeiramente contraído para a frente. Como costumamos ver nas fitas do Tarzan... Talvez, se tivesse tirado aquela roupa do corpo e ficado somente com uma pele de gato a proteger-lhe as partes proibidas, ele se assemelhasse mais ao verdadeiro Tarzan. Ele não gostou do meu sorriso. Deu a primeira arrancada que eu evitei, atingindo-o com um pontapé no estômago. Refez-se rapidamente. E vi-o redobrar de cuidados. Devia ter chegado à conclus�o que estava a lutar com um homem perigoso. Mas não o deixei pensar mais. Quando voltou a estender o braço segunda vez, foi para emitir um grito e largar a lâmina. Mas ele soube aproveitar a situação. Ao ver-e com a atenção posta na mão que acabara de largar a faca, martelou-me a cabeça com a outra. Larguei-o com um safanão. Ele olhou para mim, e naquele olhar desnudei-lhe o pensamento. Vi-lhe medo nos olhos. Baixou a vista para o chão, para a faca caída, e não hesitei. Com fúria, pontapeei-lhe a cara, e com a cadáver de Júlia na retina, continuei a socá-lo. O sangue correu-lhe pelo nariz e pela boca. Ainda assim, agarrou-se-me pela cintura e atirou-me contra a parede. E pela primeira vez senti o contacto dos seus punhos a matraquear-me o rosto. Era duro aquele negro. Mas não mais duro que eu. Quando lhe vi nos olhos um clarão de vingança e de morte, senti que ele iria dar cabo de mim. E eu não queria acabar ainda. Senti o sabor acre do sangue, esqueci as dores e as feridas, agarrei-o com toda a força pela cabeça, e enterrei-lhe os dedos nos olhos. E ele gritou. Gritou para suportar a dor, ao mesmo tempo que me agarrava os braços e se torcia para a direita, levando-me com ele. Larguei-o por instantes, e vi-o recuar com as mãos sobre os olhos. Esbarrou na porta entreaberta e escapou-se por ela, cambaleando. Nada mais me retinha ali. Agarrei o talão que encontrara no livro que Júlia descobrira antes de morrer e corri para a janela. Era por ela que iria sair.
Extracto de "O mistério da mulher embriagada"- A.N.(1966) |
A primeira coisa que vi, logo que abri a porta do consultório, foram uns joelhos de mulher. Detive o olhar, por uma fracção de segundo, naquele pedaço de beleza humana, e só depois recuperei a posição, encarando a dona daquelas pernas. Era uma jovem dos seus vinte e quatro anos, talvez vinte e cinco, de rosto ligeiramente afunilado e lábios finos e macios. Trazia o cabelo seguro ao alto por uma fita a duas cores, e os olhos, descuidadamente pintados, eram fundos e sinistros. Tentei um sorriso, talvez para me ajudar numa desculpa, e tive sorte. Ela mostrou-me uma fileira de dentes muito brancos, que fariam inveja às jovens-anunciantes das pastas dentífricas, e desnudou uns lábios carnudos e tentadores. "-Faz favor..." perguntou-me, serpenteando as maçãs do rosto. Não respondi logo. No íntimo, percorria-lhe os olhos, o rosto, o cabelo, como a procurar-lhe um defeito que não encontrava. Ela mexeu-se, inquieta, atrás da secretária, e desviou o olhar para os papéis que tinha na sua frente. As mãos rosadas, de dedos esguios, desfizeram a folha de papel que examinara, e a cabe�a ergueu-se de novo, acompanhando o brusco movimento do corpo a endireitar-se na cadeira. Percebi então que era mais baixa do que imaginara. Mas percebi-lhe um busto bem composto e torneado. "-Quer dizer o que pretende?..." Despertei do meu sonho, e o mundo voltou a ser o que era. "-Chamo-me Roy Stamp e desejava falar com o doutor Calvani." A jovem corou, mas escondeu-me a ternura antes manifestada. Quiz endireitar-se, mas cedo verificou que já o fizera momentos atr�s. "-O senhor doutor não se encontra neste momento. Saíu urgentemente. Se tem algum..." "-Não, muito obrigada. Virei noutra altura." Sorri-lhe, mas desta vez não obtive resposta. Os lábios tremeram um pouco, feiaram o conjunto, e ensaiaram por momentos uma dança indecifrável e silenciosa. Quando abria a porta para sair, apoderou-se-me a tentação de olhar para trás, mas para recordar o contorno dos joelhos desnudados para além da madeira da secretária. Acabei por fechar a porta com força...
Extracto de "O mistério da mulher embriagada"- A.N.(1966) |
...Por duas vezes, evitei os pontapés que me dirigiu com toda a fúria, mas depressa verifiquei que não levaria a melhor com muita facilidade. Soquei-lhe o estômago por várias vezes mas, em resposta, ele também sabia bater. Procurei fazê-lo largar a arma. E para isso, lancei-lhe as duas mãos ao pulso, torcendo-o com força. Calvani emitiu um grito de dôr, mas n�o largou a arma. E aconteceu o inevitável. O disparo produziu um estrondo, precisamente quando Silvia se precipitava para nós. Não sei se o seu intuito era ajudar-me a mim, se a Calvani. Certo é que não chegou a concretizar os seus desígnios. A bala entrou-lhe mesmo à altura do peito, obrigou-a a dobrar-se, e lentamente as for�as mirraram-se-lhe em cadeia. Calvani olhou. Eu olhei também. E assim permanecemos, vendo o corpo da jovem a contorcer-se silenciosamente, resistindo ao espectro da morte. Evitei que se estatelasse. Esqueci Calvani, esqueci as suas amea�as e o seu propósito de eliminar-me. Pensei somente naquela pobre rapariga, dobrada sobre mim, suplicando qualquer coisa no esgar que lhe sombreava o rosto. E quando a apoiava com ambos os braços, notei o movimento de Calvani. Levantou a arma rapidamente, disparou e atirou-se para a porta. Ao ver-me cair, desapareceu sem olhar para trás. Por entre a névoa que se apoderava de mim, pouco a pouco, acompanhei-o com o olhar, momentos antes de aparecerem os primeiros curiosos. Silvia caíu-me dos bra�os e estatelou-se no soalho do gabinete. Só então percebi que ia perder os sentidos.
Extracto de "O mistério da mulher embriagada"- A.N.(1966) |
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