Na penumbra do al�m
Caminhavam com uma lentidão impressionante. Nas suas vestes, puramente brancas, o reflexo de uma luz fusca, brotada de muito longe. Como fantasmas, apenas cobertos por longa túnica a envolvê-los quase por completo, continuavam, uns após outros, numa fileira impressionante de alvura e silêncio. Não tem obstáculos o seu caminho. Somente um carreiro estreito, que percorrem monotonamente. Até ao limite que é o seu fim. Ou até ao início de um novo princípio que nunca terá fim. E não podem recuar. É uma força que os conduz, superior à própria capacidade de se moverem por si. Já se ouve o eco surdo de Ormuzd. A luz da esperan�a alumia perspicuamente a curta ponte, levantada sobre um beco de trevas. É nele que se escondem Ariman e os seus demónios. Com um bramido escarnecedor, brotam da escuridão, deturbando a calma marcha dos viandantes. Acorda o deus da pernície, quando o primeiro pisa a ponte sobre o abismo. Cessam os motejos, morre o gabo de Ariman. Uma língua de fogo varre o local, a luz brilha com mais força e, num desvario evidente, o exército de Ormuzd arrebata um filho seu. E a batalha continua... numa perseverância igual. Uma queda no érebro. Rugem os demónios, de entre as trevas...
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Desceu a negrura sobre o campo sombrio. Os parcos restos de uma luz baça que ousara desobscurecer, por momentos, aquele manto de noite e de dôr, voltaram a esgotar-se, insuflados por gemidos melancólicos, surgidos silenciosamente. A pouco e pouco, sombras densas e coleantes foram descendo àquela furna, enchendo o sinistro local de um pranto monótono e arrepiante. Em curtos momentos, eram como nuvens descendo de mansinho, sem interrupção. Campo extenso, atapetado, a perder de vista, de grossas bátegas de lama e poeira, num conjunto sinistro de charcos e vazios. Aquelas sombras mergulharam avidamente e desapareceram no seu interior, reaparecendo a seguir, movidas ao som estridoso dos seus ais e lamentos. E uma voz longínqua, vinda de um ali indefinido, chasqueava surdamente, furifunando uma espécie de cântico com o eco estonteante das famintas sombras. Aquele era o seu repasto. Pó e lama. E sobre elas, a mesma voz trocista, em risos escarninhos de miséria e imundície, num condimento final. No mesmo pranto doloroso, içam-se, desfazem-se das suas vestes, e sobem alto na mesma nuvem de sombra e dôr. E, enquanto sobre si carregam o fardo oneroso do seu mísero valor egotista, volta a calma e a luz baça àquele abismo de trevas, farto alimento de negros espíritos milenários.
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E quando tentei encontrar-me, verifiquei que era mais fácil continuar assim. A luz da liberdade pelo fogo! O desejo da autotortura criado pela mente do Homem! E depois, a liberdade humana, resultado culminante de uma luta, que foi grande, entre duas forças supremas! Liberdade! A máquina deixa de ser livre... E se a isto se resumem as acções do homem, cai por terra a esperança do imortal que lhe eleva a vontade de continuar. .......................................................................................................................................... Caminhava com um destino falsamente certo. Calcava o solo, humectado pela chuva que caíra havia horas, com passos lentos e suaves. Creio que estava só, embora imaginasse uma multidão a rodear-me, freneticamente. E ao sentir que cambaleava, culpei o enlear turvo dos meus pensamentos. Um ru�do atrás. Suave agora, brusco depois. Então, um combóio a surgir num repente, com ru�do e com fragor, for�ando-me a olhar, rápido, para o lado. Luzes a entrechocarem-se-me, montes de latas a fundirem-se-me, o estrondear a repercutir-se-me no cérebro já cansado. Tudo sobre mim, tudo numa dança frenética, num possível e imposs�vel que se cruzam sem se conhecerem, numa realidade e irrealidade impossíveis de serem separadas. Um princípio do fim. Ou o princípio de um princípio para o qual não estava preparado. E a transição deu-se. Suave, impungente. Cruzei a porta desconhecida, como se fosse ela a dirigir-se-me. Somente um frémito, um súbito receio e a incerteza de uma autoconsciência que, não a sentindo fugir, já não a sabia com clareza. ..........................................................................................................................................
Extractos de "Na penumbra do além"- A.N.(1966) |
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