De Profundis, Valsa Lenta

José Cardoso Pires

Continuo a segui-lo. A princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha perdido de mim e ia, hospital fora, a arrastar uma névoa.
O relatório neurológico foi terminante: acidente vascular cerebral de gravidade muito acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à zona nobre do cérebro, bloqueando duramente a artéria. Não era um problema hemorrágico, antes fosse, e por isso não havia o recurso à cirurgia com largas perpectivas de solução, explicou à Edite um especialista do Serviço de Neurologia. Assim, acrescentou ele, a situaçäo apresentava-se bastante difícil, um caso de isquemia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. Do ponto de vista motor nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se a si próprio. Mas o centro da fala e da escrita estava profundamente afectado e podia conduzir a uma sobrevivência em incomunicabilidade total.


... Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura.
Nesse per�odo, já o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras n�o havia nem podia haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo é que me dou conta disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá o Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a deslocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo uma sombra branca corrida no branco como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive retive mesmo? retive - melhor assim.

Até que certa manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a crepitarem à minha volta. Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo. O quarto: para lá da janela, o palácio de cristais dourados (que era o Hotel Penta, quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam companhia a desafiarem-se à gargalhada de cama para cama, um deles com um braço paralizado ao longo do corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço, com um walkman debaixo do len�ol. Cada qual a rir, a rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava uma língua em tremular de labareda.
VOLTE !