Sindroma
(João Moutinho)
Aconteço
Adágio
Adoro
páginas brancas
Aflito
Anoitecer
Asas
do Segredo
Até
amanhã
Bobby
Sands Morreu
Eu
ACONTEÇO
Não me confundam
Tenho ossos, carne, músculos,
Orgãos vários a viver...
Pernas, braços, mãos...
Não me perguntem
Pela cabeça...
Essa?
Essa vagueia por aí
Como uma louca...
Divide-se entre ela e mim
Raramente consigo dominá-la
E ri-se... e goza...
Quando se liberta
E não me deixa espaço
Para ser apenas Homem!
Sou, assim, dentro de mim
Quase sempre aquilo que não quero
Sou apenas um espelho
Do que pareço
Às vezes nem eu espero
E aconteço...
Ressoa
ADÁGIO
pelas teclas fogem-me os dedos
ao compasso clássico
do Adágio
misturo palavras, melodias,
fragmentos de plágio...
ruídos, ecos, sentimentos...
e ficam sempre incompletas
as sinfonias...
nos meus medos
os segredos das palavras,
os segredos dos poetas,
nunca passam pelas mãos,
por muitas teclas
que toquem,
surgem na cabeça,
ressoam roucas no abdómen
às vezes - como loucas -
saltam da garganta,
correm, pulam, dançam...
estúpidas param,
no céu de muitas bocas
e, entupidas, desabafam,
como os pais,
doidas de esperança,
os sonhos todos
de criança,
nos húmidos lodos
de todos os portos
de todas as docas...
pelas teclas passam
as sombras dos segredos...
pelos dedos sobram
restos, mitos, medos...
pedaços desfeitos
de sonhos inacabados...
imperfeitos...
rasgam-se os raios da manhã
despidos já de lua
cravo os dentes na maçã
carentes dos beijos
que não deste...
revejo-te ainda nua...
e mato de vez
os teus lúbricos desejos
e nunca
nunca mais
eu beijarei a tua rua...
Sem teclas
Para quê os dedos?
ressoa
ADORO PÁGINAS BRANCAS...
Adoro páginas brancas...
Ideias alinhadas...
Cabeças limpas...
Às vezes gosto até de ler-me
Através das gotas
Que me turvam o olhar...
Aqueles pedaçinhos do meu rio
Que teimam, apesar da brisa macia,
Transbordar...
Têm outro sentido
As lágrimas distraídas
Que não consigo evitar.
Afagam-me tão dentro,
Tão em mim,
Que as deixo rolar livremente
Pelas rugas do meu rosto,
Pelo riso do meu espanto,
Por entre as palavras
Que não consigo soletrar
Contidas em tantas emoções...
E, se alguém as souber ler,
As decifrar...
Banhar-se-á na foz do rio
Na voz mais íntima da minha vida
E nunca chorará sensações pela manhã...
Poderá então sentir-me e afagar-me
Sem necessidade de soletrar a vida
Alinhei ideias...
Limpei a cabeça
E a página manchou-se...
De azul...
Ressoa
AFLITO
Já tudo foi escrito
Cantado e dito!
Já disse o Pessoa
"que tudo vale a pena
Se a alma não é pequena"
Jorge de Sena...
Escreveu que se fartou
Camões, também
Tanto... que cegou!
Qualquer filho de mãe
Com a mania que é esperto
Dirá o quê... de Al Berto?
Que é truque?
Que é verniz?
Se calhar diz
Que é normal
Como a "Pedra Filosofal"
Filha de algum infeliz
O que é que eu fiz?
Deuses!
O que é que eu fiz?
Que me estala o coração?
Será do Gedeão?
Pronto!
Caíu-me no goto...
Certamente foi o Botto
Revoltado no caixão
"Ai! Carago...
Carago não Carago!..."
Esqueci-me do Saramago
Que inventou o "Nóbel"
E embolsou um bom bago...
E agora o que é que eu faço
A este papel almaço
Onde escrevo este escritito?
Será que irei por aí?
Ai! Meu Deus!
E o Ary...?
Confesso que estou aflito
Já tudo foi escrito,
Contado
E dito?
Ressoa
ANOITECER
Não me agitem!
Deixem-me tranquilo
No meu canto
Devo estar senil
Ah! O que eu amei
Depois de Abril
O que eu escrevi
O que eu sonhei...
Não me agitem!
Deixem-me sentir
De olhos fechados
Sem tactear
Todos os portos
Todos os corpos
Que ficaram por abrir
Todo o mar
Que não pude navegar
Não abram as persianas
Da minha câmara escura
Estão lá todas as imagens
Todas as personagens
Da minha ternura
Está lá a aventura
Da minha vida...
Não corrompam os ficheiros
Que tanto custaram a gravar...
O primeiro verbo amar
A primeira lágrima
A primeira dor
A primeira esquina,
Que tive de dobrar,
O primeiro sorriso de criança
A primeira esperança
O primeiro sonho,
Que não consegui realizar
O primeiro pesadelo
Foi tão medonho
Que nem me atrevo a repetir
Não ataquem, por favor,
Os meus executáveis
Mesmo se desagradáveis
Têm de existir
São eles que me permitem
Sobreviver...
Escrever...
Subsistir...
E, às vezes, são notáveis
Na forma de se exprimir...
Não me agitem
Posso ser perverso!
Quantas vezes faço da dor
O reverso do amor
Quantas vezes o meu verso
É todo o universo
Que não pinto
Quantas vezes o sorriso
O riso tresloucado
Do mais perfeito juízo
É o retrato passado
Vivido sem paraíso
Não me agitem
Quanto muito
Sussurrem no ouvido
Todo o prazer sentido...
Digam tudo...
O que tiver de ser
Sobretudo
Antes do amor
Depois...
Revistam a urna de veludo
E deixem-me anoitecer...
Ressoa
Jan 2000
ASAS DO SEGREDO
Enganam-se os teus dedos de veludo
Quando pintas as rugas do olhar
Nem os pincéis dos dedos pintam tudo
Nem os olhos se deixam enganar
Nem sempre uso caraça no Entrudo
Nem sempre rio para te agradar
Vejo sorrisos a que não me grudo
Nem "cola tudo" me pode agarrar
Embora às vezes eu não queira ir
Quando voar eu voarei sem medo
As minhas asas nunca irão cair
Usei as penas desde muito cedo
E se há segredos que não sei fingir
Volto a mentir nas asas do segredo
Ressoa
Jan 2000
ATÉ AMANHÃ...
Quando se diz: -Adeus
É já a saudade
Que se sente
Por isso eu digo apenas:
- Amigos até sempre!
Até que os heróis
Deixem de ser barro
E gente...
Seja apenas gente...
Até que "até amanhã"
Seja apenas despedida,
Seja "até amanhã"
Se Deus quiser
Ou não quiser
E até amanhã
Volte outra vez
A acontecer...
Ressoa
BOBBY SANDS MORREU
Imagine que da astronave
Há pouco pousada na minha imaginação,
Faíscando azul e ouro,
Saíu um personagem estranho,
Suave...
Calmo...
Irritantemente calmo,
No translucido contraste
Da minha interior revolta!
Olhou-me,
Como se há muito me conhecesse,
Avançou sem receio
Na minha direcção e...
Instintivamente recuei,
Como se pudesse fugir
Da minha pobre imaginação.
Encurralado,
Entre mim e eu próprio,
Estendi a mão à consciência
Que sorrindo
- pareceu-me que sorria -
Firmemente me estendia a sua.
Senti-me estupidamente inseguro
Como se sobre mim
Pesassem as mortes de S. Salvador
Ou do Afeganistão
E aquele meu flácido cumprimento
Mais não fosse do que
Irremediável confissão.
Já não pensava recompor-me e,
Quando, enfim,
Levantei a cabeça
E com ela
O peso dos doze milhões
De refugiados
Deste martirizado planeta,
Senti-me ruir
E os joelhos dobraram-se em pranto,
Na relva nuclearmente poluída,
Embora as estatísticas governamentais
A afirmassem verde e viva...
Uma vez mais
Aquela mão se estendeu para mim
Afectuosa,
Como se remisse, no gesto,
Todos os meus pesadelos
E deixassem de ter importância
Os problemas da Polónia,
As guerras do Médio Oriente,
O apartheid da África do Sul
E o próprio Klu Klux Klan
Tivesse desaparecido
Em golpes de magia.
As lágrimas gritaram-me na face,
Quando finalmente
Encarei aquele rosto,
Simplesmente porque não me reprimia.
Inesperadamente,
Como se a paz
Sentisse poder existir,
Um coro monumental
Irrompeu nos meus ouvidos,
Milhares e milhares de watts,
Repetindo as últimas palavras de Allende,
Tendo como pano de fundo
O matraquear entrecortado
De metralhadoras
De várias nacionalidades,
E o eco repetindo até ao infinito
A máxima de Che...
"Patria o muerte...
Pátria o muerte...
Pátria o muerte..."
O beijo névoa
Que senti na face,
Ainda misturado
No último dos ecos,
Trouxe-me novamente a mim
Mas, tão fraco, tão cansado...
Tão intimamente desesperado
Que não retribuí.
Os lábios imobilizaram-se
E apenas pude sentir
Distância.
O salto violento
A que me obrigou aquela notícia
Fez-me distanciar
Do misterioso personagem,
Irremediavelmente,
Duplamente:
"BOBBY SANDS MORREU"
Procurei ansiosamente
Na minha imaginação
Faíscas de azul e ouro.
No lugar da astronave
Que há pouco ali pousara,
Uma pedra tosca
Onde apenas conseguia ler:
-"Aqui jaz o homem do cobertor"!
Ressoa
Abril 91
EU
Eu
sou esta inutilidade
que se lê em cada rima
esta coisa nenhuma
que não presta,
esta aresta, esta esquina,
que não dobra
esta mania
de envolver a poesia
em névoa ou bruma...
Eu,
que nem tenho a certeza
de ser Homem,
e às vezes penso que sou Deus,
minto com todas as palavras que conheço,
e chego até a inventar
as que desconheço,
apenas para chatear
alguns ateus
e outros infelizes,
que aparecem no caminho
a complicar a vida,
escondendo os seus deslizes
Eu
sou ave
só com uma asa
e teimo inutilmente
em querer voar...
Nunca me atingiram em cheio
os tiros que levei
acertaram sempre no mesmo meio
de mim e sempre me levantei...
Eu
sou o insucesso
o resultado do meu excesso
de querer ser...
sou só parte
do que me deram ao nascer
Eu
sou a metade
involuntária
da minha solidão...
Eu
sou a metade
da canção que nunca te cantei
da qual apenas sei
a parte que escrevi
a outra parte
é o silêncio que te dei
e que senti
Eu
sou a contradição
latente
entre esta asa que voou
e a outra que tombou
no chão
carente
Eu
Sou...
sei eu
a coisa mais bonita
que me aconteceu
e só a mim podia acontecer
amar...
amar
apenas por viver
Eu
sou esta coisa futil
que a vida transformou
e sente que escrever...
ainda é util
Ressoa
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