

Germano Silva
Em 1387, por ocasião do casamento, na Sé Catedral do Porto, do senhor D. João I com D. Filipa de Lencastre, Fernão Lopes, o cronista mor do reino, a propósito dos festejos que então se realizaram para assinalar a boda real, escreveu este saboroso naco de prosa: " as ruas são estradas de ramos e flores, as portas das casas enramadas de louros, os mesteirais andavam em danças e jogos, as mulheres fizeram plas, as quaes acompanhavam com muitas cantigas, e donas filhas dÕalgo, cantavam letras, como é costume de bodas". Isto foi há mais de seiscentos anos. E os portuenses desses recuados tempos tinham fortes razões para estarem satisfeitos e para festejarem o casamento real com a alegria e a espontaneidade de que nos fala o cronista. É que foi com D. João I que verdadeiramente começou a emancipação da cidade do Porto. Aconteceu quando a Igreja portucalense, mediante uma indemnização, renunciou aos seus direitos sobre a cidade e os seus moradores. Ao cabo de séculos de contendas entre prelados e portuenses, consumava-se a vitória dos burgueses sobre a prepotência episcopal. Nas suas lutas seculares, nunca os do Porto tiveram medo de enfrentar Roma na pessoa dos bispos. Também não temeram a ira do rei que muitas vezes enfrentaram. E à nobreza, expulsaram-na da cidade. Ao longo dos tempos foi sempre esta a têmpera do portuense, homem de trabalho, respeitador, patriota mas livre. O velho burgo nunca vergou a cerviz, lutou estoicamente com as classes mais poderosas e em defesa do oprimido; alcançou prerrogativas únicas e privilégios que nenhum outro concelho conseguiu.
O PODER LOCAL
Seguiu-se a consolidação do Poder Local, com os do burgo a governarem-se a si próprios, elegendo magistrados que saiam do seio da própria população ou, em raros casos, eram de nomeação régia. Depois foi o voltar do olhar para o futuro. O Porto é uma cidade marítima, implantada às portas da foz de um importante rio. A imagem da "coca" (navio de influência germánica) esculpida numa das torres da Catedral, a do lado esquerdo para quem está voltado de frente para a porta principal do templo, dá testemunho da nossa vocação de marinheiros. Alcançada a maioridade da sua cidadania, desfraldade a bandeira da liberdade, o burguês volta-se para o comércio e é no rio Douro que encontra a força catalisadora das suas reivindicações liberais. Como escreveu Cruz Malpique, "com o mar à porta, não admira que os portuenses tivessem desfraldado as velas dos seus barcos e se aventurasse ao comércio que os havia de levar até às ricas terras da Bretanha." A preponderância dos homens do Porto nos negócios que se desenvolvivam na Europa de trezentos era tal, que foi um mercador portuense, Afonso Martins Alho, quem negociou, no ano de 1353, em nome do rei de Portugal, o primeiro tratado de comércio que se realizou entre o nosso país e a Inglaterra. O mercador revelou-se um excepcional negociador e revelou tamanha astúcia que a partir de então para se referenciar uma pessoa com elevado grau de esperteza se dizia que era "esperto como o Alho" e não "como um alho", como vulgarmente se usa. Afonso Martisn Alho tem o seu nome numa rua do Porto.Um pequeno troço que liga a Rua das Flores à Rua de Mouzinho da Silveira. Mas bem merecia tê-lo em artéria de maoir projecção citadina.
CEUTA E AS DESCOBERTAS
Em 1394 nasce no Porto o Infante D. Henrique cujo baptisado na Sé Catedral a cidade festeja de forma não menos digna com que celebrou as bodas matrimoniais de seus pais, outra vez "com as ruas juncadas de verdura cheirosa e aromas de feno esmagado". E quando chega o sonho de Ceuta lá está o Porto a concorrer para a empresa com "cabedais", homens e navios. A estes fartamente os surtiu com as melhores carnes de suas rezes, guardando para si as tripas. E o resto da história é por demais conhecida. Chega o reinado de D. Manuel e entra-se afoitamente pelo mar dentro na epopeia das descobertas. E o cidadão do Porto aparece sempre na frente. Em cada uma das armadas que se metem ao mar, vai gente do velho burgo, especialmente mercadores e mareantes. Não tarda, abate-se sobre o reino o mal estar filipino. São sessenta anos de ocupação. Mas no momento da libertação do jugo castelhano, o velho castelo de S. João da Foz tem uma palavra a dizer e o Porto escreve aí mais uma patriótica página da sua história. O tempo não pára de correr. Em 1807 ouve-se gritar no Porto "os franceses, estão aí os franceses..." E Junot apodera-se da cidade. Um ano depois soa de novo o grito da liberdade. Mas napoleão não desarma e manda novas tropas agora sob o comando de Soult. Estava-se em 1809. Dá-se o terrível desastre da Ponte das Barcas. Quarenta e poucos dias depois o invasor é de novo expulso do Porto.
O LIBERALISMO
O ano de 1820 é referenciado como o baluarte das liberdades constitucionais que têm, ainda hoje, como bandeira, a cidade do Porto. Foi aqui que se ouviu o primeiro grito de exaltação aos valores do liberalismo constitucional. Segue-se a guerra fratícida. O Cerco do Porto, conforme escreveu Cruz Malpique, "constituiu uma página extremamente bela da nossa história e um momento inesquecível nos anais do velho burgo, porque ele representa uma espantosa concentração de forças espirituais, de fé no impossível, de virtudes de abnegação, de impulsos de graça." A guerra civil acaba com a vitória do liberalismo. Mas D.Pedro IV morre amargurado. Dá ainda provas do seu reconhecimento pela cidade onde combateu e em homenagem aos seus habitantes lega o coração à cidade do Porto. Foi com gente desta têmpera e através de heróicos feitos que a cidade se tornou Invicta, ganhou o direito ao título de Muito Nobre, pode orgulhar-se ainda hoje de ser o baluarte da Liberdade e a capital do Trabalho. E a juntar a todos estes títulos, tem agora mais um o de ser Cidade Património da Humanidade. Pode dizer-se que em cada uma das pedras do centro histórico do Porto, em cada uma das suas casas ou em cada uma das suas ruas foram escritas, a letras de ouro, porque regadas com sangue e, às vezes, à custa da própria vida, verdadeiras façanhas heróicas. Como um dia escreveu Firmino Pereira, "atravessar esses bairros é percorrer muitos séculos de lutas, de rebeldias, de protestos, de reivindicações. Dentro desse sepaço palpitou a grande alma da Pátria". Hoje, todos nós, os do Porto, sem distinção, nos orgulhamos desse passado sobre o qual se construiu a Cidade Património da Humanidade.
in " Jornal de Notícias "
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